O Ministério da Fazenda deve acabar com a incerteza sobre a
legalidade de caça-níqueis online nos próximos dias. Uma portaria da Secretaria
de Prêmios e Apostas (SPA) liberará os jogos eletrônicos de azar, como o
Fortune Tiger, mais conhecido como “jogo do tigrinho”.
O documento vai definir os critérios usados que deverão ser
usados para certificar a idoneidade desses caça-níqueis. Hoje, esses jogos se
disseminam na internet a partir de uma brecha na legislação de apostas de quota
fixa –quando o apostador sabe o quanto pode ganhar com base no risco de perder,
como ocorre em apostas esportivas. “Um trecho menciona jogos de apostas
eletrônicos em eventos aleatórios, mas em nenhum momento os permite”, diz o
vice-presidente do Instituto Brasileiro de Direito Regulatório Thiago Valiati.
Por outro lado, o artigo 50 da lei de contravenções penais,
de 1946, proíbe de forma explícita “os jogos em que o ganho e a perda dependem
exclusiva ou principalmente da sorte”, como é o caso dos caça-níqueis.
Para Valiati, uma portaria específica da Fazenda acabaria
com essa controvérsia, em um primeiro momento, embora a medida crie insegurança
jurídica. “Pode ser revogada a qualquer momento, sem precisar de autorização do
Congresso”, diz. “O ideal seria que isso fosse tratado de forma específica na
própria lei”, acrescenta.
Esses jogos de azar digitais se proliferam no Brasil desde
que uma lei de 2018 que legalizou, sem delimitar regras claras, os sites de
aposta esportiva, mais conhecidos como “bets”. Os caça-níqueis online são parte
do modelo de negócios dessas plataformas, que, em geral, estão sediadas em
países com legislação permissiva como Malta e Curaçao.
O Ministério da Fazenda, então, apoiou uma lei aprovada no
Congresso Nacional em dezembro do ano passado para regulamentar esse mercado,
na expectativa de arrecadar até R$ 12 bilhões por ano. Era esse o texto que
trazia a menção aos jogos eletrônicos aleatórios, como tigrinho e outros, fora
de contexto, pendurada ali por parlamentares como um jabuti.
A SPA irá bloquear, a partir de 2025, domínios de
plataformas de apostas que não estiverem hospedadas no Brasil, proibir que os
sites não cadastrados façam publicidade e atuar junto ao Banco Central para
impedir a saída de recursos financeiros de bets irregulares. Essa última medida
visa evitar lavagem de dinheiro e evasão de divisas.
Todos os sites registrados terão de estar sob o domínio
“.bet.br”. A Fazenda terá de organizar campanhas educativas para indicar que os
demais sites não teriam aprovação do governo.
Como grande parte dessas empresas ainda não está
registrada, a Receita Federal ainda não tem um registro de quantas bets atuam
no país. Essas plataformas atuam sob o modelo “white label”, em que uma marca
responde pela relação comercial com o cliente, mas todo o serviço é
terceirizado –o que facilita a proliferação dessas casas de apostas online.
Levantamento da Folha de S. Paulo feito durante os
primeiros 20 dias de junho encontrou 616 bets que distribuíam o jogo do
tigrinho apenas na biblioteca de anúncios da Meta. Nenhum tinha domínio “.br”,
que indica hospedagem em um servidor brasileiro.
Pelas regras que devem ser previstas na portaria, o
algoritmo não poderá estar “viciada” para enganar o apostador. O objetivo é
evitar que a plataforma faça o usuário ganhar no início para intensificar a
sensação de recompensa e depois impor várias derrotas. Uma empresa
certificadora credenciada pelo governo atestaria a adequação à regra.
No caso do Tigrinho original, por exemplo, a desenvolvedora
do jogo, PG Soft, define uma taxa de retorno por pagamento de 96,81% –se o
jogador apostar infinitamente, de cada R$ 100 que ele colocar no jogo, R$ 96,81
voltam para ele. Isso ocorre de forma aleatória, algumas pessoas vão perder
mais do que os R$ 3,29 e outras podem até ganhar.
Sem certificação, pode haver adulteração do algoritmo para
levar o apostador a grandes prejuízos. Isso configura crime de estelionato,
como em um caso sob investigação da Polícia Civil de Alagoas.
A legislação também vai impor diretrizes de publicidade
responsável, como indicação explícita de que o jogo é restrito a maiores de 18
anos. Pelas regras, será proibido que “pessoas que gozem de prestígio junto ao
público” façam parte desses anúncios ou indiquem as apostas como forma de renda
extra ou alternativa ao trabalho.
As normas para apostas online passam a valer no início de
2025. No entanto, crimes financeiros já investigados pelas polícias estaduais
como fraude, estelionato e pirâmide financeira em contexto de distribuição de
jogos de caça-níqueis online são passíveis de punição.
Segundo o diretor-presidente do Instituto Brasileiro de
Jogo Responsável (IBJR), André Guelfi, o mercado regulado “parte
impreterivelmente” de sistemas auditados. “Isso na prática significa que os
jogos oferecidos no Brasil seguirão os mesmos padrões de mercado oferecidos em
países como Inglaterra, Alemanha, Dinamarca, Suécia, entre outros.”
O IBJR defende que o jogo do tigrinho e outros slot games
certificados seriam opções de entretenimento, não meios de ganho de dinheiro
fácil.
Hoje, as bets já movimentam R$ 110 bilhões ao ano no
Brasil, contabilizando transações com apostas esportivas, caça-níqueis e até
transmissão ao vivo de roleta, segundo dados da ANJL (Associação Nacional de
Jogos e Loterias).
Para a diretora executiva da ACT Promoção da Saúde, Paula
Johns, os jogos de azar são um problema de saúde pública, assim como o álcool,
o tabaco e os ultraprocessados –no caso das apostas, ainda haveria um risco de
superendividamento. “Tratam-se de produtos viciantes, uma vez que a pessoa está
sujeita a um gatilho, ela não tem mais autocontrole e é muito difícil
remediar.”
Na avaliação dela, o tempo da regulação nunca consegue
acompanhar a popularização dos produtos viciantes. “Depois que o problema está
dado, restam apenas intervenções paliativas”, diz.
FONTE: O TEMPO/ECONOMIA